Acordei hoje com uma nostalgia danada de viajar. De sair por aí vendo o mundo com meus olhos, de rodar quilômetros e quilômetros no meio do nada para chegar a lugares que nem estão no mapa, de encontrar gente tão diferente, mas, no fundo, tão igual a gente. Num mundo em que agora mal podemos sair de casa, viajar não é mais destino. Mas a alma de viajante é inquieta e já arrumou um jeito de sair por aí. No meio da manhã me peguei bem longe daqui, fui parar nas minhas lembranças de viagem: as do pensamento e as que trago na bagagem.
São elas que agora me levam para o mundo. Me fazem sentir o calor do Jalapão, ao cozinhar o feijão que trouxemos da comunidade do Mumbuca e plantamos no sítio; me trazem o frescor e a liberdade de um banho no Tapajós, ao preparar bolinhos de mandioca e piracuí e ainda me lembrar dos amigos que viajaram conosco para Alter do Chão; me alegram a alma com um prato de tom yum, que me leva para as ruas de Bangkok; me fazem sentir o vento no rosto na garupa de uma moto pelo norte do Vietnã, quando preparo um simples, mas delicioso tofu com tomate; me trazem aquela umidade tropical que adoro das ruas da Malásia quando saboreio um peixe assado na folha de bananeira; ou me transportam de volta para uma das experiências mais incríveis da vida, na África do Sul, ao sabor de um refogado de abóbora com berbere, que ajuda também a matar as saudades dos amigos que fizemos por lá.
Não tem jeito, minhas memórias de viagem são sempre ligadas, de uma forma ou de outra, à cozinha. Tanto que, quando chego de viagem, uma das primeiras coisas que faço é cozinhar algo que experimentei no destino das férias. E repito o ritual sempre que as saudades apertam, como nestes tempos de isolamento social. O bom é que o estoque de sabores para passear por aí, mesmo que só à mesa, é farto. Sou da turma que traz peso na mala na volta para casa. A minha é descarregada quase toda na cozinha: comidas (de farinha a conservas), temperos, livros de culinária, sementes, cestas, cerâmicas, talheres e toda sorte dessas coisas que adoro. Isso tudo me ajuda a recontar o que vivi de mágico em um lugar. Os sabores daquela terra recém-descoberta, o jeito de viver, a história, a cultura, tudo se mistura na cozinha, vai à mesa, reverbera na minha história e vira, para sempre, memória da viagem.
Já voltei para casa com abóboras, licuri e dendê. Com sementes de ají, rocoto e limão e um belo de puxão de orelhas do meu pai. Com placa de carro achada no meio do rio e galho torto de árvore. Com cerâmica indígena, maturador de queijo da canastra e sementes de milho crioulo. Com e-mail de novos amigos e receita escrita em guardanapo de papel. Com micuim, picada de muriçoca, pontos no rosto. Com sabor do melhor bolo de milho da vida. Com pote de doce de leite que, de tão bom, até eu não resisti, uma dúzia de vinagres artesanais e coleção de colheres de pau e outras garimpadas nos mercados de antiguidades por aí. Com potes e mais potes de curry, pimenta e sal de todo tipo. Com farinha, camarão seco e massa fresca de abará. Com braseiro de cerâmica, chapa de ferro e panela de barro. Com muda de planta que nem cabia na mochila e banco de madeira que cabia na mala. Com pasta de tamarindo, café fermentado por civetas e dois quilos de papel de arroz com gergelim (que, claro, viraram pó na mala). Com geladeira para carro que ficou presa em um dos aeroportos e levou mais de três meses para chegar em casa. Com macadâmias cobertas por chocolate, que, por descuido, foram parar no lixo de um bar. Com 13 livros de culinária na mochila, uma baita dor nas costas e nenhum arrependimento. Já teve de tudo!
De uma das viagens, há uns cinco anos, trouxe para casa uma lembrança inusitada: a de uma fome descomunal. Eu deveria, na verdade, me lembrar do prato que salvou meu dia e virou receita afetiva por aqui. Mas, toda vez que me lembro da Chapada Diamantina, é como se eu sentisse meu estômago roncar. Num dia, saímos para fazer uma trilha e, achando que fosse curta, comi apenas uma batata-doce no café da manhã. Enganados estávamos e muito faminta fiquei, porque a trilha durou até o fim da tarde, eu não tinha levado comida e só chegamos a Lençóis à noite, quando fomos jantar. Dei uma busca na internet e em dois tempos sabia onde comer: Na Moranga, com este nome não poderia ter erro. E não teve mesmo, comemos um prato tão, tão gostoso (e não era só o tempero da fome) que não sobrou casca da abóbora para contar história. De tão bom o jantar, voltei para casa com uma nova amiga cozinheira, uma receita deliciosa que faço sempre e um porta-malas carregado de abóboras de todos os tamanhos e formatos.
Eu também poderia me lembrar desta viagem como a vez em que Léo e eu comemos uma abóbora inteirinha e ficamos querendo mais. Tudo bem, a fome era grande, mas o sabor desse camarão na abóbora era bem especial. É como se fosse um bobó de camarão, mas, em vez de mandioca, vai um creme de abóbora com leite de coco caseiro e muitas ervas aromáticas. Por isso, tomei a liberdade aqui de chamá-lo de bobó. Os camarões vão nesse creme, que, depois, recheia uma abóbora inteira assada. Uma boa pimentinha para acompanhar e surpreendemos a Leila, dona e cozinheira do restaurante. A memória que ela guarda desse dia, imagino, é da primeira vez que alguém devorou o prato todinho.
O que gosto nessa receita, que a Leila me passou tim-tim por tim-tim, é que é muito leve e muito bem temperada. A abóbora usada no creme é cozida antes com todos os temperos e as ervas aromáticas de que você gostar: eu uso alho, shissô, coentro, pimenta, gengibre, manjericão, alfavaca, sementes de coentro. Use o que tiver ao seu alcance. A ideia é fazer um caldo bem caprichado para a abóbora absorver bastante sabor. Depois, a gente faz um tempero bem baiano, com cebola, coentro, tomate, gengibre, pimenta, leite de coco caseiro, pimentões amarelo e vermelho. É esse tempero mais a abóbora que fazem o creme, que recebe os camarões e, se gostar, ainda leva um toque de dendê. É muito saboroso! Sabor de Bahia mesmo.
É claro que você pode só fazer o bobó de abóbora com camarões e servir em uma tigela, com um tanto de coentro e uma pimenta boa para acompanhar um arroz branco ou arroz de coco, porque, se é para estar na Bahia (mesmo que só à mesa), coco é sempre bom. Mas servir na abóbora assada eleva o prato a outro patamar, tanto de beleza quanto de sabor. Porque, junto do bobó, a gente pode servir um pouco da polpa e da casca da abóbora assada, que dão um contraste bom de texturas. Fora que fica tão lindo que nem sei explicar. Também acompanham bem um belo de um molho de pimenta ou um sambal e até uma farofinha de coco (feita com a sobra do leite de coco, como falei aqui). Para a turma vegetariana, acho que trocar os camarões por uma mistura de cogumelos deve ficar bem bom. E, para quem não curte dendê, pode grelhar os camarões em óleo de coco ou azeite ou, então, apenas cozinhar os camarões no próprio creme de abóbora. Dos dois jeitos fica bom.
Eu prefiro assar a abóbora japonesa ou cabotiá, porque é mais sequinha que a moranga. Para assar, basta cortar uma tampa na parte superior da abóbora, uns três dedos abaixo do topo e, com uma colher (gosto de usar colher de sorvete), raspar as sementes (que podem ser assadas e viram um tira-gosto ou um croc-croc para sopas e saladas). Tempero só com sal (se quiser um fio de azeite) e levo ao forno a 180 ° C por cerca de uma hora, até ela estar macia por dentro e com uma casquinha gostosa por fora. Tem um post aqui que ensina como assar a abóbora inteira direitinho. Aliás, assar uma abóbora assim com um fio de mel e flor de sal já faz uma refeição deliciosa para mim.
Essa história me deu ainda mais saudades da Bahia, sempre um bom destino. Mas, assim, entre abóboras, receitas trazidas de viagem e os sabores que guardamos na memória, burlamos o distanciamento destes tempos, a vontade de pôr o pé na estrada e revisitamos aqueles lugares que não nos saem da memória.
- Para a abóbora assada:
- 1 abóbora japonesa inteira
- sal
- azeite (opcional)
- Para cozinhar a abóbora:
- 800 g de polpa de abóbora japonesa em cubos sem casca
- 3 dentes de alho amassados com a casca
- 6 fatias de gengibre
- 1 pimenta dedo-de-moça (outro outra da preferência) inteira
- ervas frescas da preferência: manjericão, alfavaca, shissô, coentro, salsinha, semente de coentro (não recomendo alecrim e sálvia)
- sal
- Para o bobó:
- 4 tomates grandes picados
- 1 pimentão vermelho pequeno picado
- 1 pimentão amarelo pequeno picado
- 1 cebola cortada em quatro
- 3 dentes de alho amassados
- um pedaço de 2 cm de gengibre ralado
- 1 a 2 pimentas dedo-de-moça cortadas sem sementes
- 1 maço de coentro: meio maço (com talos e raízes) cortado grosseiramente para o creme e o restante das folhas picadas para guarnição
- ¾ a 1 xícara de leite de coco caseiro
- 1 kg de camarão médio ou grande limpo
- caldo de ½ limão
- sal
- pimenta-do-reino moída na hora ou pimenta-de-macaco ou semente de mamão verde moída (opcional)
- 1 colher (sopa) de dendê (se não gostar, use óleo de coco ou azeite de oliva)
- Preaqueça o forno a 180 ° C.
- Prepare a abóbora que será assada: com uma faca adequada, corte uma tampa na parte superior da abóbora, a uns três dedos abaixo do topo. Retire a tampa e, com uma colher (gosto de usar a de sorvete), raspe as sementes e a mucilagem.
- Tempere com sal e, se quiser, um fio de azeite.
- Leve a abóbora para assar por cerca de 1 hora, até estar bem macia por dentro.
- Tempere os camarões já limpos com sal, pimenta-do-reino moída (ou o substituto) e o caldo de limão. Misture bem os temperos no camarão e reserve.
- Prepare a abóbora que será a base para o bobó: em uma panela grande, junte a abóbora e todos os temperos (alho, gengibre, pimenta e todas as ervas), coloque água até a altura da abóbora e tempere com sal.
- Leve para cozinhar, em fogo médio, nesse caldo bem aromático até a abóbora estar macia, mas sem se desfazer.
- Quando estiver cozida, escorra a abóbora, despreze as ervas, mas reserve o caldo (que pode ser usado em sopas).
- No liquidificador, os tomates, os pimentões, a cebola, o alho, o gengibre ralado, a pimenta, o coentro com talos e raízes e meia xícara de leite de coco. Se o copo do liquidificador for pequeno, divida em duas partes. Bata bem.
- Junte a abóbora cozida e bata bastante, até o creme ficar liso e homogêneo.
- Prove e ajuste os sabores: sal, pimenta, gengibre.
- Ajuste também a consistência, acrescentando aos poucos o leite de coco até chegar à consistência do creme. Reserve.
- Leve de novo a panela ao fogo médio (nem precisa lavar) e junte o dendê. Escorra os camarões, reservando o caldo, e leve metade deles para dourar no azeite. Se colocar todos de uma vez só, eles vão cozinhar, em vez de dourar. Deixe os camarões dourarem por 1 minuto de cada lado, virando-os com uma pinça. Retire os camarões já dourados e junte o restante, repetindo o processo de dourar de cada lado. Reserve os camarões.
- Abaixe o fogo e junte na panela o caldo de limão da marinada dos camarões. Com uma colher de pau, mexa bem para soltar o fundinho da panela.
- Acrescente o creme de abóbora batido. Se necessário, acrescente mais um pouco de leite de coco.
- Quando aquecer, junte os camarões e deixe cozinhar por mais 2 minutos.
- Desligue o fogo e junte as folhas de coentro.
- Sirva em seguida com arroz e molho de pimenta.
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