Fubá, para mim, sempre foi um trem bem mineiro. Daquelas coisas tão típicas que elas mesmas acabam por sintetizar um lugar. Não tem Minas sem angu, couve, feijão vermelho. Sem bolo de milho, café coado, fogão à lenha. Sem broinha de fubá de canjica, queijo da roça, abraço de vó. Não tem Minas sem comida boa. Nem sem mesa posta. Muito menos sem afago. De alguma forma, todas essas imagens se misturam na minha cabeça quando penso na minha terra do peito (psiu, não conte pra ninguém que não nasci lá, viu?). E o sabor que essas memórias têm, entre tantas delícias mineiras, é o de fubá. De algo quentinho, amarelinho, reconfortante. Não à toa, quando quero matar as saudades da minha avó é para a cozinha que corro e preparo as broinhas de fubá de canjica que ela me ensinou a fazer. Em dois tempos dou um pulo lá nas minhas Minas Gerais.
Talvez por essa minha associação tão forte entre fubá e Minas, nunca dei muita bola para as receitas estrangeiras com fubá. Até porque tem fubás e fubás e meu lado mineira desconfiava dos fubás vistos por aí — nada como um de moinho de pedra, o angu fica outra coisa! Isso começou a mudar quando passamos uma temporada ano passado na África do Sul e na Namíbia. O fubá também é comum pelo sul da África. Um prato básico de vários países, comido muitas vezes no café da manhã ou nas merendas nas escolas, é um mingau de fubá (mais claro que o nosso), tipo um angu, porém mais mole. De país para país, mudam o nome e os jeitos de fazer — às vezes com manteiga, às vezes só com água e sal, até frito eu comi (e é delicioso). Provei o pap (como chamam esse prato na África do Sul) na Cidade do Cabo, acompanhado de (quem diria!) couve fininha e chakalaka, um refogado delicioso e um pouco apimentado com gengibre, tomate, cenoura, feijão branco e outros temperos. Quase me senti em Minas! Gostei tanto que aprendi a fazer lá e já incluí no cardápio aqui de casa. Foi um bom jeito de me abrir para outras formas de cozinhar com fubá pelo mundo.
Antes disso até, uma receita com fubá sempre me chamou a atenção em livros ou sites de culinária. É o cornbread, um pão de milho típico do sul dos Estados Unidos. Mais do que a receita em si, que na maioria das vezes leva farinha de trigo (o que me desanimava a testar, já que não uso farinha aqui em casa), o que prendia mesmo meus olhos era a forma como ele é assado: numa frigideira de ferro. Eu amo panelas de ferro e sempre ouvi dizer que antigamente assavam broas de milho em panelas de ferro lá em Minas. Então, a ideia de algo feito com fubá e assado numa panela dessas me soava muito familiar. Fiquei com isso um bom tempo na cabeça.
Ontem amanheceu um dia chué aqui em Brasília. Daqueles em que não vemos o sol e fica um chove-não molha (na verdade, chove-e-molha muito) sem parar. Fez frio, bastante para quem não curte nem um ventinho fresco no verão. Me fechei em casa com chá quente para trabalhar e esquentar o dia de qualquer jeito. No fim da tarde, porém, queria um pouco mais de calor e aconchego. A cozinha é sempre o meu refúgio. Lembrei do tanto de fubá mimoso (feito na roça, em moinho de pedra, claro) que minha mãe trouxe para mim estes dias. E, na hora, me veio à mente a imagem do cornbread. Era chegado então o dia de testar uma broa ou pão de fubá assado na frigideira de ferro.
Li algumas receitas americanas e segui minha intuição mineira para adaptá-las ao meu gosto. E deu tão, tão certo que a primeira fornada acabou rapidinho e já teve repeteco. Quente com azeite, ghee ou manteiga é um arraso. Com mel também fica ótimo. E para chuchar na gema mole no café da manhã, então… O pedaço que sobrou no dia seguinte provei com sardinha escabeche (tem a receita no livro da minha mãe e qualquer hora posto aqui porque é realmente muito boa) e combinou demais. Me lembrei de um restaurante português aqui de Brasília que servia sardinhas na brasa com broa de fubá e sempre quis repetir em casa. Com a broinha comum, mais doce, não combinava; mas com essa, sim.
Aliás, não sei bem se chamo de pão ou de broa. Porque não é totalmente salgado, como seria um pão, nem exatamente doce, como uma broa (nos Estados Unidos, dá até briga entre os que usam ou não mel ou açúcar no cornbread). Fica exatamente no equilíbrio gostoso entre um doce de leve com o salgadinho bom. Fica úmido, suculento. Fica alto, fofinho. E — ah, que delícia — fica com uma crostinha maravilhosa.
O principal aqui, creio, é assar a broa-pão numa panela ou frigideira de ferro. E ela tem que estar bem quente antes de receber a massa. Isso faz toda a diferença, porque é o que ajuda a deixar as crostinhas crocantes e deliciosas. Claro que o ideal é usar a panela de ferro, mas, se você não tiver uma (é um bom investimento para a cozinha, é bastante versátil, vai do fogão, ao forno e, depois, à mesa) pode fazer em fôrma de bolo, de preferência antiaderente (e não as de silicone). Da mesma forma, coloque a fôrma no forno enquanto ele preaquece e você prepara a massa por, pelo menos, uns 5 minutos, até estar bem quente.
As receitas americanas são sempre feitas com buttermilk: é um subproduto da produção de manteiga, o líquido que sobra depois de usar a nata para bater a manteiga. Por aqui é o que chamamos de soro ou leitelho, mas não se encontra muito para vender (geralmente é usado em bebidas lácteas, alimentação suína e para fazer queijo frescal, segundo o meu pai, especialista no assunto). Tem percentual menor de gordura e de proteína e sabor ácido. Como também não uso leite animal aqui, substituí o soro por leite de coco caseiro e, para dar a acidez, um pouco de limão. É só espremer o limão no leite de coco e aguardar uns 5 a 10 minutos (não sei se dá certo com o leite de garrafinha, mas é tão fácil e mil vezes mais saboroso fazer o leite de coco em casa que, se você nunca fez, vale experimentar; explico como fazer aqui).
Eu sei que muita gente acha que é frescura falar em flor de sal, mas, para quem gosta de cozinha, não é. Existem muitos e muitos tipos de sal por aí. Eu gosto sempre de usar um sal mais grosso para finalizar pratos, assar legumes e bolos. O gosto é muito bom e ajuda a dar crocância. Uso bastante o sal de Guérand (um sal cinza francês, grosso e mais úmido), mas pode ser qualquer outra flor de sal. Nessa receita, uso um pouco de sal comum (marinho) e um pouco do sal de Guérand, que ajuda a dar o salgadinho bom que fica principalmente na crostinha do fundo. Mas, claro, se não tiver em casa, faça com o sal comum mesmo. Acrescentei também uma pitada de leve de erva-doce, que combina demais com fubá.
O preparo da massa não tem segredo nem exige liquidificador. É tudo feito à mão mesmo. Misturam-se todos os secos numa tigela grande, os molhados numa outra tigela e depois junta tudo, com cuidado para misturar bem, mas não demais. Aí é só levar ao forno alto e esperar para ser feliz. O melhor de tudo isso foi ouvir a minha mãe dizer que a minha broa-pão de fubá ficou igualzinha à broa que minha avó assava antigamente na panela de pedra coberta de brasa. Vó, ainda quero comer essa broa! Por enquanto, achei um novo sabor de fubá para matar as saudades lá de Minas. E confirmei o que eu já sabia: o DNA do fubá é mineiro de verdade, mesmo quando a inspiração é importada!
- 2½ xícaras de fubá mimoso
- 1 colher (chá) de bicarbonato'
- 1 colher (chá) de fermento (eu uso um natural, feito em casa)
- 1 colher (chá) de sal marinho
- ½ colher (chá) de flor de sal (opcional)
- 3 ovos
- 2 xícaras de leite de coco caseiro
- caldo de ½ limão pequeno (galego ou taiti)
- ⅓ xícara de melado
- uma pitada de erva-doce (cerca de 1 colher de café)
- óleo de coco ou azeite para untar
- Preaqueça o forno a 200 °C.
- Escolha uma frigideira/panela de ferro ou uma fôrma com cerca de 26 cm de diâmetro e a unte com o óleo ou azeite. Reserve. Assim que o forno esquentar, coloque a frigideira (apenas untada) para aquecer por, pelo menos, 5 minutos, enquanto prepara a massa. A frigideira/fôrma tem que estar bem quente (deve-se ouvir um chiado quando colocar a massa na frigideira).
- Esprema o caldo de ½ limão pequeno no leite de coco e reserve.
- Numa tigela grande, misture os secos: o fubá, o bicarbonato, o fermento e o sal (marinho e a flor de sal, se for usar). Reserve.
- Em uma tigela média, bata bem os ovos até ficarem bem aerados. Aos ovos acrescente os outros líquidos: o leite de coco e o melado.
- Junte a mistura dos ingredientes molhados à dos ingredientes secos. Adicione a erva-doce.
- Misture bem a massa, até ficar homogênea. Só não misture demais para não perder as bolhas de ar da massa.
- Com cuidado, tire a frigideira do forno e passe a massa para ela. Leve para assar por 18 minutos (ou até estar assado e dourado por cima).
- Sirva a broa-pão quente ou morna, pura ou acompanhada de azeite, ghee, manteiga ou mel. Pode ser servida fria também e como acompanhamento de refeições.
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