Se a cozinha é minha inspiração, a horta é o meu respiro. Eu poderia dizer o contrário também e talvez até fizesse, em tempos normais, mais sentido: se a horta é minha inspiração, a cozinha é o meu respiro. Afinal, é do quintal (ou da feira) que tiro boa parte da inspiração para cozinhar e na cozinha que eu relaxo e de lá que vem meu fôlego para tocar a vida com muito mais graça. Mas agora, nesses tempos de quarentena, é na horta que tenho encontrado minha pausa. É lá que consigo mudar completamente de assunto, sintonizar com outras energias, não pensar em nada mais além do que os meus sentidos conseguem absorver em meio a limões, pimentas, laranjas, maracujás, um monte de ervas e flores, mais um tanto de folhosas e matos de comer. Tem sido um privilégio ter tempo para me esquecer por lá sem a correria do dia a dia.
Nessas horas, só consigo pensar em como é generosa, abundante, a natureza. É como se, com cada alimento, viesse também um cupom, uma espécie de refil para a gente se abastecer para sempre. Você colhe ou compra um mamão e, pronto, tem ali nas suas mãos a oportunidade de nunca mais, em teoria, faltar mamão em casa. Basta jogar as sementes na terra — só precisa de uns 20 cm e com sorte um passarinho amigo seu ainda faz o serviço para você — e dali a alguns meses saborear a primeira de muitas levas de mamão. Acho mágico, por exemplo, que jogo cascas de cará na composteira esperando apenas ter húmus e fertilizante para as plantas e, dali a uns dias, abro a caixa e descubro uma dezena de mudas de cará vivas, brotando em meio a cascas de ovos, minhocas e folhas secas. Sem esforço nenhum, basta plantar que teremos mais e mais carás. E novos brotos virão das cascas daqueles que colher e cozinhar. E assim vai, num ciclo sem fim. É ou não é para se encantar?
Toda vez que parto uma abóbora, minha paixão, fico admirando como ela traz dentro de si toda essa abundância. Me sinto compelida a dar curso a essa vontade de gerar mais e mais vidas. Então, planto. Claro que nem todas as sementes brotam (de forma leiga, as sementes ocas e achatadas não servem para plantar, mas são ótimas para comer tostada ao forno; as boas para ir para a terra são gordinhas, estufadas), mas isso é outra história. Eis que dia desses foi o clímax, digamos assim, da horta aqui de casa. Colhi as primeiras abóboras que plantei ano passado. Foram meses indo quase que diariamente à horta espiar se elas continuavam crescendo, se havia novas flores ou se as ramas teimavam de novo em se espalhar calçada afora. Até que chegou a tão esperada hora da colheita.
É uma abóbora dessas brasileiras (segundo o meu pai, uma moranga), docinha, bem docinha, não sei dizer de qual variedade. Foi então que me peguei pensando em como achei essas sementes. E aí me lembrei de que tudo começou com um limão-siciliano que amigos muito queridos, Maíra e Bruno, trouxeram para mim de Portugal (tenho a sorte de ter amigos que me dão os melhores presentes!). A semente já estava brotando, então, fiz uma boa sementeira com húmus da composteira (só depois descobri que húmus é muito forte para sementes), plantei, cuidei diariamente. Dias depois, começaram a sair os primeiros brotos.
Brotinho de planta é quase tudo a mesma coisa, difícil saber o que é no início, mas eu jurava que era broto do limão estrangeiro. Anésia, minha ajudante, um dia me desenganou: é melancia! Bom, a surpresa veio com mais uns dias: nem limão nem melancia, era abóbora! Poderia ter ficado decepcionada, mas confesso que considerei isso um presente! Provavelmente as sementes da abóbora estavam ali na composteira, só esperando uma oportunidade (também chamada de terra-água-sol-e-amor) para romperem o silêncio da espera. O mais engraçado nessa história é que essa caixa da composteira também veio da casa dos meus amigos. Como não estavam usando, me emprestaram a caixa, que já tinha um pouco de húmus, pelo que presumo que podem ter me dado as sementes de abóbora também. Se é verdade a hipótese, nunca vamos saber, mas gosto de pensar nesses presentes todos que recebemos diariamente. Obrigada, amigos!
Já que a abóbora colhida não era uma abóbora qualquer, merecia um preparo à altura. Nesse caso, significava algo bem simples. Nada de temperos que roubassem a cena. Eu queria mesmo era conhecer o sabor próprio da abóbora do meu quintal. Fiz, então, ela assada inteira. E aí a mágica agora acontece no forno: apenas abóbora, calor e tempo. Uma hora e pouco depois, está pronta: a casca fica bem molinha, o miolo úmido, suculento, doce, doce. Chega a me dar água na boca! Para honrar tanto frescor, apenas um pouco de flor de sal e um fio de mel (um excelente mel) sobre a casca e a polpa. Um bom contraste para realçar a doçura da própria abóbora. É só isso e é das melhores abóboras que já comi!
Esse modo de preparo funciona para qualquer variedade de morangas e abóboras de gomos, como a cabotiá, só nunca testei com abóboras de pescoço (fica bom também com outros vegetais, como batata-doce e berinjela). A única dica aqui é, como o preparo é bem simples, escolher ingredientes de qualidade máxima: uma abóbora bem fresca, uma boa flor de sal (gosto de usar o sal cinza de Guérande) e um mel puro e suave, de preferência, de abelhas nativas.
Se quiser testar outros temperos, combinam bem com abóbora gengibre, hortelã, baunilha, tomilho, sálvia e alecrim (os dois últimos precisam ir ao forno ou fogo antes). Caso for colher a abóbora do próprio quintal, um bom sinal de que está madura é quando o cabinho está bem seco. Se você tem essa sorte, aproveite e prove também a cambuquira, como os mineiros chamam os brotos e as flores de abóbora. Basta passar na frigideira quente com azeite e, se quiser, alho e ter certeza de que a natureza é mesmo generosa conosco.
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