Eu poderia reconstruir todas as minhas melhores memórias por meio do olfato. Minha infância dos dentes de leite talvez tenha cheiro de jujuba. Um cheiro doce, colorido, proibido. A primeira viagem sozinha, para Noronha, cheira a sal marinho. Eu mergulhava dia, tarde e noite, nem dava tempo de a roupa de neoprene enxugar, a água do mar cristalizava na minha pele mesmo. As férias longas na casa da minha avó quando menina têm tantos cheiros, todos eles de mesa farta: de café ralo com leite gordo da fazenda de manhã, de alho refogando nas (muitas) panelas do almoço, do bolo de nada assado todas as tarde. A mudança na adolescência para Juiz de Fora, ainda bem, registrei de forma doce: uma mistura de banana, canela e queijo derretido na torta com que minha mãe me esperava para almoçar pelo menos uma vez por semana. Ah, e tem o cítrico floral inigualável do primeiro tom yum que tomei na vida, no sul da Tailândia, e que me fez me apaixonar na hora por um aroma novo do capim-limão. Me encontrei tanto naquele aroma que outro dia passando pela cozinha, enquanto eu socava uns bulbos de capim-limão, Léo comentou: cheiro de casa!
Posso até mesmo recriar cheiros de memórias do que não vivi. Nunca provei as cervejas que o Léo produz, mas pelo cheiro são um brinde à casa cheia. Não conheço ainda o Marrocos, mas já me imagino andando pelos mercados de Marrakesh aspirando o ar perfumado de patchouli e hortelã. Logo depois, se fecho os olhos e respiro mais fundo, estou o Sri Lanka, onde as ruas têm cheiro de canela, folhas de curry e cominho tostado.
Pois esse cheiro maravilhoso de especiarias invadiu a cozinha aqui de casa e nunca mais saiu da minha cabeça desde a primeira vez que fiz uma receita de curry em pó do Sri Lanka. A Índia tem misturas de especiarias, as masalas, incríveis (tem um post completo sobre as origens do curry em pó, por que ele não é indiano e muito mais aqui), mas as cingalesas são especiais. Elas combinam de uma forma singular especiarias comuns, como canela, cominho e pimenta-preta. Receitas e proporções variam de família para família, mas três especiarias são consideradas essenciais: sementes de coentro, de cominho e de erva-doce. Podem entrar ainda pimenta vermelha, sementes de mostarda, cravo. Cada casa tem pelo menos duas versões: uma com as especiarias cruas, usadas principalmente para peixes, lentilhas e vegetais, e outra com elas tostadas, que entram mais em pratos com carnes, frutas e castanha-de-caju.
Tostar as especiarias eleva o sabor do curry em pó ao máximo. Com o calor, elas liberam melhor o aroma e os óleos essenciais e o sabor muda. Só tem que cuidar para não queimá-las e deixar gosto amargo na comida. Para evitar isso, a melhor forma é tostar cada especiaria separadamente, numa frigideira seca, em fogo baixo até o ponto em que o aroma muda e os grãos ficam mais dourados. Aos poucos, o nariz vai sabendo identificar bem o ponto. Mas uma dica boa é saber que algumas levam mais tempo que outras para tostarem: grãos de coentro, por exemplo, podem ficar de um a dois minutos, dependendo da quantidade, da espessura da frigideira e do fogo. Já os grãos de cominho queimam muito rapidamente e o cheiro denuncia logo. As sementes de mostarda pipocam assim que estão no ponto.
Para fazer os curries em pó, preferimos sempre as especiarias inteiras, que preservam por mais tempo os óleos essenciais. Podemos moê-las de duas formas: a tradicional é o no pilão, de preferência um bem pesado de pedra; e a moderna, num moedor elétrico, desses de moer grãos de café. A vantagem do pilão é que o sabor fica mais complexo, mas leva mais tempo e pode não ficar tão fino. Vale experimentar pelo menos uma vez! No moedor, é bem rápido e o único cuidado é manter um aparelho apenas para esse fim, ninguém quer beber café com gosto de cominho nem comer um curry com sabor de café. Das duas formas, as especiarias devem estar bem secas. Por isso, levamos à frigideira também, rapidamente, cravo, cardamomo e folhas que forem ser moídas.
Uma folha que é fundamental na cozinha do Sri Lanka é a folha de curry. Não, ela não tem gosto daquele curry em pó que vende pronto nos mercados. O sabor dela é muito único e cítrico, uma mistura de limão, tangerina e pitanga. Imagine só! Falei mais dela aqui no post sobre curry e seus vários significados. As folhas são da Murraya koenigii, uma arvoreta da família do limoeiro, nativa da Índia e do Sri Lanka e rara por aqui. Consegui achar um muda para chamar de minha, mas, antes de ter uma aqui no quintal, eu substituía as folhas de curry por folhas jovens de limão (principalmente o siciliano) e de pitanga. As folhas novas são sempre menos fibrosas e mais aromáticas. Para usar, basta lavar, tirar o veio central e secar. Na receita do curry em pó, uso só a de pitanga e fica ótimo. Antes de moer, passo a folha na frigideira em fogo baixo para garantir que não vai ficar nenhuma umidade.
Quando você terminar de moer esse curry em pó tostado, vai sentir o aroma que me encanta e me faz passear pelas ruas do Sri Lanka sem sair da minha cozinha. Gosto de usá-lo para fazer um curry de cajá-manga verde, mas fica ótimo também, sem exagerar na quantidade, em curries e ensopados de mamão verde, jaca verde, carnes e vegetais mais amargos, como berinjela. Eu coloco também no curry de abóbora e cambuquira, sempre acompanhado de leite de coco caseiro, que abraça os sabores todos. Fazer o próprio curry em casa é uma experiência sem volta e uma nova porta para memórias olfativas inesquecíveis.
Curry em pó com especiarias tostadas
Ingredients
- 3 colheres (sopa) de sementes de coentro
- 2 colheres (sopa) de sementes de cominho
- 1 colher (sopa) de pimenta-preta em grãos
- 1 colher (chá) de semente de erva-doce
- 1 colher (chá) de semente de mostarda preta
- 1 pedaço de canela em pau de 5 cm
- 5 cravos
- 5 bagas de cardamomo
- 2 galhos de folhas de curry ou 8 folhas novas de pitanga
Instructions
- Lave as folhas de curry ou de pitanga e seque-as bem.
- Em uma frigideira limpa e seca e em fogo baixo, coloque as sementes de coentro e deixe por cerca de uns 2 minutos até ficarem douradas. Passe as sementes para um prato seco.
- Coloque na frigideira as sementes de cominho, os grãos de pimenta, a erva-doce, os grãos de mostarda, a canela e as folhas de curry ou de pitanga. Vá mexendo a frigideira constantemente até as especiarias exalarem o aroma e ficarem mais coradas. Preste bastante atenção para não queimar.
- Desligue o fogo e junte o cravo e o cardamomo na frigideira. Deixe por um minuto para liberarem os aromas, mas sem tostar.
- Passe as especiarias para um prato e, quando esfriarem, moa-as num moedor elétrico de grãos ou num pilão de pedra.
- Use em seguida ou guarde em um vidro bem seco. Dura até um mês.
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