Se teve uma coisa que fiz nessa pandemia (longe de terminar), foi curry. De peixe, de lula, de camarão, de abóbora e cambuquira, de mamão verde, de cajá-manga verde, indianos, cambojanos, tailandeses, indonésios, malaios, sul-africanos, caribenhos, um sem fim de receitas e combinações.
Longa também e curiosa é a história por trás do termo curry. Temos portugueses, ingleses, disputa por especiarias, colonizações e muito mais misturado aí. E começa com uma surpresa para muita gente: curry não é uma palavra usada para a se referir a nenhum tipo de comida na Índia. Não, eles não comem curries lá! Como assim?!
Pois é, essa história rende e vou explicar direitinho aqui no post. Aliás, não só ela, mas também as cinco aplicações que dou para o termo. Quando falo curry, posso estar me referindo a:
1. um ensopado;
2. uma mistura de especiarias;
3. uma pasta de temperos;
4. a folha da Murraya koenigii;
5. a erva Helichrysum italicum.
Ontem mesmo fiz um curry de cajá-manga, com curry em pó tostado e folhas de curry. Parece confuso, mas vamos lá!
As origens do curry
Quando falamos em curry, a primeira coisa que vem à mente é comida indiana. Estou falando aqui daquele prato de carne, peixe ou hortaliça cozido em um molho picante, quase sempre com especiarias e geralmente servido com arroz ou pão. Esse é um dos sentidos da palavra.
Mas, apesar da conexão forte, o curry não é uma criação indiana. Pode procurar: nos restaurantes tradicionais de lá não vai encontrar pratos com esse nome ou qualquer palavra indiana para se referir a curry. Hoje os indianos já até usam o termo, mas apenas quando se referem a esses pratos em inglês. Então por que será que associamos o curry a Índia?
O conceito de curry como disseminado mundo afora é uma invenção dos ingleses. Foram eles, no século 19, que impuseram à cultura indiana a ideia do curry como um prato nacional. Até então, os indianos chamavam os pratos por nomes específicos, que identificavam os curries de acordo com a região, técnica, ingredientes e textura. Korma, por exemplo, são os curries feitos com carne em um molho cremoso geralmente de iogurte, com alho e gengibre; rasam são os com caldo bem ralo feitos com polpa de tamarindo, pimenta-do-reino, tomate e ervas, típicos da região sul; malay são os de peixe com leite de coco e por aí vai. Comparando com a nossa culinária, é como se pratos tão diversos – feito moquecas baiana e capixaba, caldo de sururu, tacacá, bobó de camarão, vaca atolada, carne de panela – passassem a ser agrupados e chamados de um único nome, por exemplo, ensopado.
Os ingleses não apenas juntaram todos esses pratos regionais indianos sob o guarda-chuva comum de curry, mas também misturaram técnicas e ingredientes típicos de um local com pratos de outro: acrescentaram, por exemplo, leite de coco, comum no sul da Índia, a curries do norte do país, de influência persa, que não usavam a fruta.
Uma mistura que só!
Os portugueses e a globalização
A fórmula do curry criado pelos ingleses era mais ou menos um ensopado de carne, peixe, legume, refogado no ghee com alho, cebola, gengibre, noz-moscada, cardamomo, cúrcuma, pimenta-preta, pimenta-caiena. As variações giravam em torno disso.
Essa nova culinária, que homogeneizava uma cozinha tão diversa, acabou sendo, segundo os estudiosos, a primeira a ter uma identidade nacional indiana, apesar de não ser autêntica.
Já o termo curry os ingleses pegaram emprestado dos portugueses, que em 1498 chegaram à costa oeste da Índia, em busca de cravo, cardamomo, pimenta-do-reino. Uma das hipóteses mais recorrentes é que, sem um termo específico para descrever os ensopados cremosos e cheio de especiarias que comiam na região de Goa, os portugueses passaram a chamá-los de caril, usando a palavra tâmil kari, que significava, entre outras coisas, especiarias ou vegetais e carnes refogados. Caril depois, com os ingleses, vira curry.
O curry que conhecemos se espalhou pelo mundo: Tailândia, Malásia, Indonésia, Japão, África do Sul, Fiji, Jamaica, Trinidad e Tobago, Guiana, todos têm suas versões de curry. Pratos com ou sem especiarias, com ervas frescas, muito ou pouco apimentados, mais secos ou com bastante caldo, servidos das mais variadas formas (até dentro de um pão de forma, como o bunny chow, da África do Sul): todos são curries. Não é toa que virou paixão mundial e também aqui em casa.
Os potinhos chegam aos mercados
Quem cozinha costuma ter na prateleira um vidrinho de curry em pó, geralmente amarelo cor de cúrcuma e comprado pronto no mercado. Ele virou curinga e vai para a panela com arroz, carnes, peixes, legumes para dar um toque indiano à comida. Tem um detalhe aí na história: a cozinha indiana tradicional não usa curry em pó. Uai, como assim se ela é tão conhecida pelas especiarias?
Pois é, é verdade: cravo, canela, sementes de coentro e de cominho, cardamomo, noz-moscada, pimenta são a marca das culinárias regionais indianas. Elas entram em chutneys, relishes, curries, sobremesas, mas são usadas de outras formas. O curry em pó como conhecemos foi uma criação dos ingleses, uma tentativa de levar os sabores da Índia para a Inglaterra.
Pelos idos de 1850, os curries (ensopados) já estavam bem consolidados na sociedade britânica, com receitas em livros e restaurantes típicos em Londres. Como falei nos posts anteriores, não eram receitas autênticas: os ingleses unificaram os diferentes curries indianos em uma fórmula única, misturando referências de diferente regiões e criando um jeito próprio de cozinhar. Fizeram o mesmo com as especiarias: no início até compravam canela e grãos de cominho na farmácia para socarem e refogarem com alho e cebola ao fazer os curries. Com o tempo, porém, cortaram etapas do processo e substituíram as especiarias inteiras por uma mistura delas já moídas.
O que os ingleses fizeram foi juntar todas as especiarias indianas de que mais gostavam num produto novo, o curry em pó. Foi uma tentativa de fazer caber num só pote toda a essência da culinária indiana. Nessa época, para se ter uma ideia, a importação de cúrcuma aumentou absurdamente, já que era um dos ingredientes principais dos curries em pó ingleses. A cúrcuma, porém, nem era usada em todas as regiões da Índia, muito menos em todo curry.
Claro, ficou mais prático cozinhar, mas as diversas nuances das cozinhas regionais da Índia foram perdidas, dissolvidas em meio a uma combinação tal de especiarias que nem mesmo existia lá. O curry em pó, tão comum hoje mundo afora, nasce como uma mistura ocidentalizada de especiarias para tentar levar para a Inglaterra o espírito da cozinha indiana.
As misturas indianas
A principal marca dos curries feitos na Inglaterra é justamente a presença do curry em pó, inexistente na Índia. Lá o que eles tradicionalmente têm na despensa são potes de especiarias inteiras, em grãos, ramos, folhas e elas são escolhidas a dedo para cada receita. Qualquer cozinha indiana também tem um pilão bem pesado usado para moer todo santo dia as especiarias. Antigamente havia até um encarregado do serviço, o masalchi, que toda manhã transformava em pó as especiarias escolhidas, criando misturas únicas e sempre frescas, chamadas de masalas.
Os indianos têm um bom motivo para manter esse hábito até hoje: usar especiarias moídas na hora acrescenta um sabor que nem se compara ao das já moídas e guardadas na prateleira. Além disso, cada especiaria tem um tempo próprio para liberar seus aromas, sabores e óleos essenciais na comida. Os indianos começam uma receita, por exemplo, adicionando ao óleo sementes de coentro, que demoram mais para liberar o sabor, antes de colocar cúrcuma ou grãos de cominho, que queimam rapidamente.
O mesmo princípio seguem para tostar as especiarias que serão moídas: vai uma por vez para a frigideira seca justamente para controlar melhor o processo e evitar que algumas não tostem completamente ou que outras queimem e deixem um sabor amargo na comida.
Uma das masalas mais conhecidas é a garam masala, do norte da Índia e que significa “mistura de especiarias quentes” em hindi. Quente aqui não se refere à picância da pimenta, mas sim ao calor e à complexidade criados pela combinação aromática de cravo, canela, grãos de coentro e de cominho, pimenta-do-reino (pode levar ainda cardamomo preto, macis, noz-moscada), que tendem a esquentar o corpo. Não existe uma receita única, varia muito dependendo da região e das preferências da família. É bastante usado para temperar carnes, vegetais e lentilhas.
Já na Bengala, a mistura básica inclui cominho, sementes de mostarda preta, nigella, erva-doce e fenogrego. E os pratos do sul da Índia geralmente levam sementes de coentro, de cominho e de mostarda, pimenta-do-reino, assafétida e folhas de curry.
O tempero tailandês
Amo a cozinha tailandesa e foi lá que aprendi o meu tempero favorito: a pasta de curry, bem diferente das masalas indianas e dos curries em pó ingleses. É uma mistura úmida e incrivelmente aromática de ervas frescas e especiarias, socadas sempre num pilão. Elas são a base dos curries tailandeses e também de refogados e peixes assados em folhas de bananeira.
Os ingredientes mais comuns são pimentas frescas ou secas, bulbo de capim-limão, galanga (um rizoma parente do gengibre), alho, cebola (chalota), folhas ou raspas de limão-makrut ou kaffir, raízes de coentro e pasta de camarão seco e fermentado. Partindo dessa base e com pequenas variações em ingredientes e proporções, temos resultados completamente diferentes. Só de tostarmos especiarias, alho, gengibre ou a pasta de camarão antes de serem socadas, o sabor já é outro.
Os curries são geralmente classificados por cores: verde, amarelo, vermelho. O verde leva pimenta verde e fresca, raízes de coentro e folhas ou raspas de limão-makrut. A cúrcuma dá o tom da pasta de curry amarelo, muito usado para peixes, frutos do mar e frango. O vermelho, o mais versátil entre eles, tem, entre os ingredientes, pimentas secas, galanga, raspas de limão e grãos de coentro e de cominho. Uma pasta de curry bem diferente é a massamam, usada em curries de carne e cordeiro. Como tem influência mulçumana, leva canela, cardamomo e pimenta-preta, especiarias pouco usadas na culinária tailandesa.
Cozinhas de outros países do Sudeste Asiático também usam a pasta de curry: na Indonésia, é chamada de bumbu; na Malásia, rempab; no Camboja, kroeung. Para quem quiser experimentar uma pasta de curry à moda brasileira, neste post aqui no blog tem a minha receita, que uso para um sem fim de pratos: curries, moquecas, vegetais refogados, peixes assados, siri ao leite de coco. Em vez de semente seca de coentro, uso a fresca e fica um trem de bom!
A árvore que dá curry
Nina Horta (que falta ela nos faz!) tem uma crônica ótima em que conta as aventuras para conseguir uma muda de uma árvore pouco comum por aqui, mas bem cobiçada pelos cozinheiros que admiram as cozinhas do Oriente. É a Murraya koenigii, uma arvoreta da família dos cítricos e cujas folhas são aromáticas demais e conhecidas como folhas de curry (kari patta). Pois é: temos erva também com nome de curry e o sabor não lembra em nada a mistura de especiarias em pó. Ganharam o nome porque são muito usadas nos curries indianos. As folhas têm sabor bem cítrico e único, tem gente que acha que lembra louro, mas eu tendo a concordar (sempre) com a Nina Horta: parecem mais uma mistura de limão, tangerina e pitanga.
Elas são indispensáveis na cozinha do sul da Índia e do Sri Lanka, onde são fritas em óleo com sementes de mostarda e cebola e usadas como base ou finalização de curries, chutneys, ensopados de lentilhas. Podem também ser tostadas ou secas e moídas com especiarias para diversas masalas. No Camboja, na Malásia e em tantos outros países da região, entram em sopas, refogados, arrozes.
As folhas frescas são melhores que as secas porque, além de mais aromáticas, são macias e podem ser comidas. Claro que não sosseguei até ter um pé aqui no quintal. Mas, antes disso, usava folhas jovens de pitanga e de limão como substituto para as folhas de curry e o resultado é muito bom.
Algumas pessoas conhecem a árvore também como neem doce (meetha neem), mas não é a mesma planta que o neem indiano que usamos para combater pragas na horta. A Murraya koenigii é parente da murta-de-jardim e cresce muito bem aqui nos trópicos.
A erva mediterrênea
Tenho a sorte de ter uma vizinhança como as de antigamente. A gente viaja e um olha a casa; outra traz geleia quando o pé está carregado de amoras, várias trocam mudas, sementes e o excedente da horta entre si. É um tal de vai uma abóbora pra lá, volta uma sacola de alface e mostarda; vai uma mudinha de manjericão, volta um balde de pequi. E é assim, entre esse vai e vém, conversas na calçada e sacolas amaradas no portão, que conheci a planta curry. Que planta mais intrigante! Ela vem do Mediterrâneo, tem folhas verdes acinzentadas que mais parecem uma mistura de alecrim com lavanda e o sabor é completamente inusitado: lembra mesmo um pouco a mistura de especiarias de um curry em pó, mas nada muito forte.
O nome vem da semelhança do sabor, mas ela não faz parte dos curries em pó ou de masalas indianas. A Helichrysum italicum também não tem relação com a Murraya koenigii, a arvoreta das folhas de curry. Ela é parente da camomila, da estévia e do dente-de-leão, é considerada medicinal e tem aroma bem intenso. Na cozinha, basta um raminho para temperar a comida. Vai bem com carnes, frangos, arrozes e legumes assados e sopas.
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