Voltei da feira pensando quando é que paramos de ter o olhar curioso de uma criança. Quando a gente passa a se policiar para não falar tudo que vem à cabeça eu já aprendi há anos, logo que o primeiro dente siso aponta já é hora de a gente guardar alguns pensamentos-relâmpago só com a gente. Mas disso eu também me esquecera nesta manhã. Não resisti ao pedido do moço ao feirante, acompanhado de uma cara de estranhamento total: “Corta essa coisa, essas folhas aí”. Num ímpeto eu gritei: “Corta nãaaaaaaao!”. Ops, escapou! Não deu nem tempo de eu me arrepender, mesmo com os olhares ainda mais assustados do moço e agora também do feirante. “Gente, desculpa aí, mas é que as ramas da cenoura são uma delícia. Corta não”. Mas já era tarde: o feirante, numa torcida rápida e certeira com a mão direita, tinha arrancado as ramas e já as jogara na caixa que fica sempre ali debaixo da banca já destinada aos “restos da feira”. O moço olhou pra mim agora com um uma sobrancelha meio levantada, com olhar de quem se enchia de uma certa razão ou, pelo menos, uma explicação: “‘É que eu não sei usar isso”. Eu dei a ele algumas ideias ali na hora, mas o “isso” ficou ressoando nos meus ouvidos. Isso é muito genérico. Não é coisa apreciada, aquela que chamamos pelo nome. É pronome demostrativo claro: deixa transparecer todo o desinteresse.
Por que mesmo a gente deixa de se encantar com as coisas novas depois de um tempo? Tudo bem, eu sei que nem todo mundo é como eu que vai se encantar por umas ramas verdejantes de cenoura, aquela combinação mais linda de verde e laranja, que faz sucesso nas passarelas ou nos campos de futebol, mas na feira parece que não. Por que é que deixamos de lado, pelo menos, um olhar científico da coisa, investigador, inquiridor: que diabos é “isso”? Curiosidade, aliás, que pode nos salvar de poucas e boas. E que pode nos levar a mundos completamente novos.
Poderia pensar que seria a idade. Que a vida adulta nos consome energia demais para a gente querer explorar o mundo com um caderninho de anotações na mão. Afinal, aprender dá, sim, algum trabalho. Mas vejo minha avó, com seus 89 anos, curiosa ali na minha horta querendo absorver cada cheiro que nunca sentiu. “Vó, coloca o jambu na boca”. Mineira, ela nem sabe o que é, se corre risco ou não, mas abre a boca na mesma hora pra logo em seguida sorrir com o tremelique na boca. “Bom, né, vó?” “Uma delícia, minha filha. E este outro aqui ó, você usa para quê?, segue ela, na sua incansável curiosidade.
Já faz uns dois anos, ela estava me visitando aqui em casa e eu cheguei do trabalho umas onze da noite. Lá estava minha avó na cozinha me esperando. É que eu tinha falado para ela que tinha aprendido uma farofa de fubá com urucum, receita de família de um amigo, também mineiro. Pois ela queria experimentar. Esperar até o dia seguinte não era uma opção. Para que adiar uma novidade dessas? Pois lá fomos nós, quase virando o dia, aprender algo novo, como uma criança que não espera o almoço para provar aquela fruta suculenta ali na fruteira.
A cozinha é uma dessas portas de entrada para mim em mundos desconhecidos. Tenho um amigo, por exemplo, que é fanático por futebol. Desses que chutam a parede quando o Botafogo perde um gol e que também se esquecem que já têm dente siso (o importante é ter nascido, o fato de ter tirado depois não tira o juízo) e soltam um belo de um palavrão em meio ao trabalho para comemorar um gol contra do Flamengo. Pois bem, a porta de entrada para o desconhecido para ele é o futebol. É vendo partidas da série C do campeonato de Minas ou de times do Marrocos que ele mergulha nos costumes, na economia, na religião, nas leis, na vida local. Do mundo todo. Essa é a força de uma paixão, que nos faz vencer resistências contra o novo e se lançar no desconhecido.
Talvez o moço da feira não seja um apaixonado por cozinha. Talvez umas ramas de cenoura sejam apenas umas folhas verdes indesejadas na hortaliça que quer levar para a salada. Deixar na caixa do feirante seria um descarte a menos que teria de fazer em casa. Tudo bem, mas eu tinha que ter alertado. Eu sou apaixonada pela cozinha. É a minha voz. Meu olhar para o mundo. E isso, aprendi, não pode ficar contido. Mesmo que saia como um grito inesperado de quem aprendeu hoje que, nem com os quatro sisos na boca, a gente pode deixar o juízo calar uma paixão. Quem sabe assim, de paixão em paixão (as minhas, as suas, a do moço da feira), a gente vá se encantando de novo pelo novo, sempre.
Para quem quiser se arriscar num sabor de novidade, esta receita de mamão verde com curry é uma boa porta de entrada. A gente se acostuma a comer o mamão apenas como fruta no café da manhã, mas ele pode ser um legume delicioso para ocupar o centro da mesa no almoço. Eu fui descobrir isso longe daqui, lá pelas bandas do Sudeste Asiático, onde mamão verde é vendido nas feiras em delicados fios para saladas. Mas descobri ontem, só ontem, que minha avó paterna também usava mamão verde como chuchu, num cozido bem à mineira. Uma pena que eu tenha levado mais de 30 anos para essa descoberta! Mas agora ele está sempre na mesa aqui de casa. E uma das receitas de que mais gosto é mamão verde ao curry.
É supersimples e você pode adaptar para o curry (aquela mistura de especiarias típica da Índia) que tiver em casa ou, se não tiver nenhuma, para a combinação de temperos que quiser fazer: um pouco de cominho, canela, noz-moscada, cúrcuma e pimenta-do-reino, tudo em pó e misturado. É só ir testando até chegar ao sabor que mais agradar. Escolha um mamão verde, mas que não esteja muuuito duro. Pode ser de qualquer variedade, o importante é estar verde, se estiver já de vez, fica mais adocicado, já lembrando o gosto da fruta. Antes de descascar o mamão, passe a ponta de uma faca na casca dele, de cima a baixo, e deixe o leite sair. É bom fazer isso na pia, para já lavar o mamão em seguida. Aí é só descascar e fatiar o mamão verde em fios (eu uso aquele fatiador de legumes com dentes que é fácil de achar por aí), mas pode ser ralado ou batidinho com a faca. Refoga-se uma cebola, juntam-se as especiarias, o mamão verde, um tiquinho de água para ajudar a misturar e pronto: um mundo de sabores novos para a gente despertar os sentidos e manter acesa a vontade de descobrir o novo, nem que seja na cozinha de casa (ou na feira, né, moço?).
- 1 mamão verde médio
- 1 cebola cortada em cubinhos ou meias-luas
- 2 colheres (sopa) de curry
- 2 colheres (sopa) de azeite
- sal
- Passe a ponta da faca de cima a baixo em todo o mamão para tirar o leite dele. Deixe o leite escorrer e lave imediatamente em água corrente.
- Seque e descasque o mamão. Corte o mamão verde em fios ou tiras bem fininhas, usando um fatiador de legumes apropriado. Se não tiver, corte com a faca (dando batidinhas) ou rale o mamão no ralo grosso.
- Esquente uma wok ou uma frigideira grande e refogue a cebola no azeite até ficar transparente.
- Junte o curry, o sal e misture.
- Acrescente o mamão verde, misture bem e junte um pouco de água (cerca de ⅓ de xícara).
- Deixe refogar bem, por uns 5 minutos, até o mamão estar cozido, mas ainda crocante.
- Prove e ajuste os sabores.
- Sirva em seguida.
Deixe um comentário