Nestes tempos de quarentena, na impossibilidade de estar em outro lugar que não em casa mesmo, o quintal tem sido meu respiro. Acho que nasceu em mim a jardineira-observadora que só morava no desejo. A jardineira de antes andava apressada demais por aí para reparar nas pequenas coisas que ocorrem entre folhas secas, joaninhas, pulgões e um monte de bichinhos que a vista da gente não alcança mesmo num rápido passar de olhos. Tenho tempo agora de passar boa parte da manhã na horta, regando as sem número de sementeiras e mudas novas que resolvi fazer, revirando as ramas de batata-doce para ver se o gergelim que semeei já espantou as formigas-cortadeiras ou vigiando o crescimento do novo pé de abóbora-espaguete (sonho de consumo desde que, aos 9 anos, vi uma no supermercado e depois nunca mais achei).
Peguei gosto por ser surpreendida por uma novidade a cada manhã. Um dia é a semente de beterraba amarela que rompe a terra e carrega consigo, equilibrando sobre uma folha ainda tão frágil, a casquinha da semente onde até horas atrás morava apenas uma nova possibilidade de vida. No outro, é o gergelim semeado, que, sim, espantou as formigas e ainda brotou que é uma beleza sob a sombra das ramas da batata-doce. Depois, uma dose de amargor. Nem todo o cuidado do mundo foi suficiente para salvar uma das mudinhas de abóbora-espaguete de levar uma pisoteada de alguém desatento. Respiro fundo, paciência, o jeito é começar de novo. Olho em volta e vejo um pé carregado de jabuticabas maduras, ainda verdes ontem de manhã. Como podem ser tão doces e perfeitas assim?! Em pleno outono, é um plic-ploc de alegria, uma explosão roxa para deixar qualquer tristeza para trás.
Sábado foi a segunda vez nessa temporada de isolamento que saí de casa. Fui correndo, bem cedinho, à feira. Peguei as encomendas que já havia feito com os produtores e dei uma rápida passada de olho nas bancas para ver se algo mais chamava a atenção. Meus olhos pararam num abacaxi. Simples. Não ostentava uma coroa majestosa, nem cheirava a mel de longe. Sem titubear trouxe para casa aquele abacaxi um pouco maior que a palma da minha mão. Eu estava mais interessada na coroa, mesmo tímida, do que no restante da fruta. É que abacaxi orgânico é coisa rara e eu queria plantar de novo um aqui em casa. Da primeira vez, não deixei enraizar na água e nunca mais tive notícias da coroa que plantei. Essa coisa de ser jardineira inverte um pouco a lógica: faz a gente inventar moda na cozinha só para poder plantar a coroa do abacaxi!
As manhãs na horta me fazem facilmente perder a hora de começar a fazer o almoço. Esta semana por umas três vezes me peguei surpresa ao ver que o estômago já reclamava e eu ainda estava com as mãos sujas de terra. Ontem cheguei à cozinha a tempo e logo me lembrei do abacaxi, mais precisamente da coroa que quero plantar logo, antes que o frio comece a ficar persistente e atrase o enraizamento. A coroa foi para água com o cuidado de limpar as folhas de baixo para não apodrecerem. As cascas, para a geladeira; mais tarde, esquentarão o corpo numa infusão com gengibre e um pauzinho só de canela. E o miolo, para o forno: ah, que maravilha é uma abacaxi tostado! A gente não precisa ter esse prazer só na sobremesa do churrasco. Assado no forno por uns 20 minutos o abacaxi fica ainda suculento, com as beiradinhas queimadas e aquele caramelizado que muda toda a história! Aliás, outro dia deixei um abacaxi assando na brasa depois do churrasco aqui em casa e me esqueci totalmente dele lá. Só fui lembrar tarde da noite, umas 5 ou 6 horas depois. Como a brasa estava bem fraquinha, além de tostar, ele cozinhou lentamente até desidratar quase completamente, restando ainda um caldinho delicioso, aquele que você não deixa escorrer pela boca. Virou um doce, uma coisa de louco!
Este molho de abacaxi é uma preciosidade. A ideia original veio de um restaurante na África do Sul. Aliás, eles têm o jardim-pomar-horta mais incrível que já vi na vida. E a comida, com tanto ingrediente fresco a dois passos da cozinha, também é memorável. É um molho que sai do comum porque traz toda a complexidade de sabores do abacaxi tostado. Junte a isso o frescor do coentro, um ardido bom da pimenta, um bom azeite e também um bom vinagre. Aliás, está aí um ingrediente que não é olhado ainda com atenção. Um vinagre artesanal, bem feito é capaz de transformar um prato. Isso porque a acidez é fundamental na culinária: ela estimula a salivação, o que ajuda a limpar o paladar e a perceber melhor os sabores. Várias cozinhas do Sudeste Asiático exploram bem a acidez nos pratos: picles, sumo e folhas de cítricos, polpa e folha de tamarindo, frutas ainda verdes, capim-limão e vinagre. Nas Filipinas, por exemplo, o vinagre não é usado apenas como um ingrediente, mas também como uma técnica culinária: o adobo, jeito de cozinhar hortaliças, peixes, carnes com vinagre e condimentos.
Nesta receita, o vinagre não aparece tanto. Ele dá o fundo de acidez para justamente realçar ainda mais os sabores, principalmente do abacaxi tostado. Eu escolhi usar um vinagre de cúrcuma que tinha em casa. É da Cia dos Fermentados, que tem alguns bem legais e ensina também a fazer vinagres de kombucha. Na falta de um desses mais artesanais, use o melhor vinagre que encontrar. Um balsâmico branco deve ficar divino também. Para as pimentas, use uma dedo-de-moça ou outra que preferir e ajuste a picância ao seu gosto. É um molho fresco, não tão picante (mas pode ser) e com um sabor bem complexo. Fica ótimo para acompanhar saladas verdes, peixes assados, frutos do mar. Talvez até, com um pouco mais de picância, rolinhos vietnamitas. O Léo adorou comer puro com arroz! E eu, com legumes assados.
O bom da cozinha e da horta é que a gente tem essa possibilidade do transformar. De uma vontade de plantar abacaxis, sai um molho tão delicioso desses, que já virou um dos meus preferidos!
- 4 a 5 fatias médias de abacaxi maduro
- ½ xícara de azeite de oliva extravirgem
- 1 colher (sopa) de um bom vinagre (pode ser balsâmico branco também)
- ½ cebola roxa pequena em cubinhos
- 1 pimenta dedo-de-moça picadinha
- um punhado de folhas de coentro
- sal a gosto
- uma pitada de pimenta-do-reino verde ou branca (opcional)
- Preaqueça o forno a 180 ° C.
- Descasque o abacaxi e corte em rodelas médias.
- Leve o abacaxi para assar com um fio de azeite por cerca de 20 minutos, até estar bem dourado, com as pontinhas tostadas e caramelizado.
- Deixe o abacaxi esfriar.
- No liquidificador, junte o abacaxi assado, o azeite, o vinagre, a cebola roxa, a pimenta (comece com cerca de 1 colher de chá cheia), o coentro, o sal e a pimenta-do-reino verde (se for usar). Bata bem até ficar homogêneo. Prove e ajuste os sabores: se precisa de mais pimenta, sal, coentro ou ainda uma pitada de vinagre. O que deve sobressair é o sabor do abacaxi tostado, com um frescor do coentro e um ardido da pimenta, mas não tão forte.
- Sirva em seguida ou mantenha na geladeira.
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