Foi o pé de pimentas carregado do quintal que me fez chegar a esta receita. Tenho outros pés de pimenta, mas este é de longe o meu favorito. Não tem um dia que ele não me dê as boas-vindas ao quintal cheio de vivacidade. Forte, robusto e sempre pintado de verde e vermelho, brinco que é a minha árvore de Natal o ano inteiro. Aliás, ele já me deu pimentas verdes, amarelas, vermelhas, longas, redondinhas, bojudas, quase uma árvore de Natal mesmo. Agora firmou num tipo só: alongada, não muito fina, bem vermelha, brilhante. É tinhosa e engana bem: parece uma dedo-de-moça, mas é ardida a danada! Não tenho ideia de qual variedade é.
Tudo começou com umas sementes de ají e de rocoto que trouxe do Peru. Plantei na expectativa de cultivar as pimentas peruanas, e não só as saudades daquele lugar, que adoro. Colhi alguns ajís, até hoje ainda tem um pé que me alegra de vez em quando. Ao mesmo tempo, plantei sementes de uma pimenta italiana que ganhei do meu tio, na expectativa de fazer conservas como as dele, recheadas com atum e mergulhadas indecentemente num pote com muito azeite (coisa que nunca fiz). Não satisfeita, tinha que ter as pimentas comuns do Brasil, dedo-de-moça, biquinho, malagueta e apareceu também uma tipo bolotinha bem pequenininha, que, juro, nunca plantei. Bom, tiro o juramento porque às vezes eu mesma esqueço o que vai para a terra aqui, mas essa pimenta bolotinha (não, não é a bode) não tenho ideia de onde veio. Depois ganhei uma mudinha de caiena de uma amigo querido e, claro, foi para a horta. Ah, e no mesmo canteiro, plantei com meu pai minipimentões coloridos, coisa mais linda de ver. Aqui só foram pra frente os amarelos, que, depois de umas floradas, já estavam até meio ardidos. Tive um pouco, às vezes muito, de todas as pimentas. Acontece que pimenta é tipo extrovertido, não gosta de ficar quieto na sua, prefere se misturar com a vizinhança. De tanto conversê, foram se misturando, misturando até que deu nessa lindeza de pimenta aqui de casa. Dá até uma felicidade besta chamá-la de pimenta da casa.
Mais alegria ainda dá ao encher uma cesta com elas, o que já virou um ritual de todo sábado de manhã. E o ritual que segue para a cozinha. Todo dia preparo algo com elas, nem que seja mergulhar uma pimenta inteira num caldo de legumes, no final apenas, que é para deixar o aroma presente o ardido gostoso. Claro que não consigo zerar nunca o estoque delas, então boa parte divido entre amigos e vizinhos, outra congelo, com o restante faço pestos e conservas. Nestes dias de quarentena, porém, elas parecem se multiplicar, enquanto eu já não consigo mais distribuí-las. Fui ficando com mais e mais pimentas na geladeira e também na cabeça, imaginando o que mais fazer com elas. E já que temos tempo também, juntei, com a vontade de experimentar receitas novas, algo que adoro: pesquisar como cozinhas tropicais mundo afora usam um certo ingrediente. Já vi que a pimenta, tão comum a elas, vai render. Ainda bem que o estoque aqui é grande!
Minha zona de conforto na cozinha, que chamo de cozinha tropical, é o eixo Pará-Bahia-Sudeste Asiático. As influências estão em tudo, inclusive nos molhos de pimenta. Os que mais faço, então, levam coco, leite de coco, coentro, gengibre, limão, jambu ou temperos asiáticos, como molho de peixe fermentado. Adoro, por exemplo, o nuoc cham, um molho vietnamita à base de limão, pimentas e molho de peixe, ou os sambals, que são molhos típicos de vários países pelas bandas do Oriente, como Sri Lanka e Indonésia, que combinam pimenta com temperos bem aromáticos, tipo gengibre, alho, cebola, às vezes, com frutas também. Tem uma infinidade de sabores.
Quando estou com muita pressa, faço o molho mais simples de todos: o fermentado, que é basicamente bater pimentas com um pouco de água, fechar num pote de vidro e fermentar por uns dias. O resto é deixar com o tempo, que vai transformando os sabores. Desta vez, como o que temos é tempo e pimentas, quis percorrer caminhos pelos trópicos menos frequentados pelo meu paladar e me lembrei de um livro, uma raridade, sobre culinária caribenha que comprei na África do Sul numa livraria antiquário linda, linda (conto outro dia essa história). Bastou uma folheada para encher uma página de ideias. Como o Caribe tem variações de molhos de pimenta!
Faz sentido, porque a pimenta é nativa justamente daquela região ali da América Central e do México. O livro tem uma seleção de molhos que vão do Haiti e da Jamaica a Martinica, Granada e Trinidade e Tobago. Cada ilha tem seus próprios molhos de pimenta. É um repertório e tanto, muitos ingredientes são comuns e é exatamente isso que me fascina: como é possível com mais ou menos os mesmos ingredientes termos tantas combinações que resultam em sabores e texturas realmente diferentes.
O primeiro molho, então, dessa maratona de receitas tropicais apimentadas vem de Martinica, território francês no Caribe. É um molho encorpado, bem diferente, picante e ao mesmo tempo um pouco adocicado, por conta do purê de tomate. É delicado e delicioso para acompanhar peixes cozidos ou assados e frutos do mar. Eu adorei também com legumes e raízes assadas, como cará, inhame ou batata-doce. É claro que as variedade de pimentas que eles usam lá são diferentes das mais comuns aqui no Brasil, mas isso não importa. Eu faço com as minhas do quintal, você pode fazer com a dedo-de-moça, mais comum, ou qualquer outra de que gostar mais.
Em vez de tomate, como é mais comum, este molho leva purê de tomate. Eu gosto de fazer o purê, que nada mais é que um molho mais encorpado, em casa e congelar. Basta picar grosseiramente tomates, bastante para render, levar para cozinhar até desmancharem (nem precisa colocar água). Se quiser, pode fazer um refogado básico com alho, cebola e azeite e aí acrescentar os tomates. Depois que estiverem beeem cozidos, basta passar por uma peneira, apertando com o dorso de uma colher de pau, para extrair bem o sumo dos tomates. Aí volta para a panela para apurar em fogo baixinho, por cerca de uma hora. É bem simples assim, só leva um pouco de tempo, mas é daquelas receitas que a gente faz antes de precisar e guarda. Aí, quando precisa, está lá à mão. Mas, de todo caso, se preferir comprar pronto, eu encontrei, em lojas de produtos naturais, boas opções de passatas ou purês de tomate orgânicos e sem nada de aditivos, apenas tomate, cebola, alho e, às vezes, manjericão. Nunca uso, mas outro dia, como resolvemos acampar em cima da hora, comprei dois potes para levar e gostei bem dos sabores. O que não vale é usar aquelas latinhas de purê de tomate industrializado, né? Seria uma ofensa à delicadeza de sabores deste molho.
O resto da receita é tão simples quanto o mantra da minha mãe na cozinha: mistura tudo e pronto. Aliás, dos molhos caribenhos que já testei até agora este foi o favorito dela. Bom sinal, né?
- 150 g de purê de tomate (um pouco mais de meia xícara)
- 1 pimenta dedo-de-moça verde ou vermelha sem sementes e picadinha
- 1 cebola pequena picada em cubinhos
- 1 colher (sopa) de salsinha picadinha
- 2 cebolinhas picadinhas (pode usar as partes verde e branca)
- 1 colher (sopa) de alcaparras (ou azeitonas verdes) picadas grosseiramente
- 3 colheres (sopa) de caldo de limão
- sal
- pimenta-do-reino
- Numa tigela média, combine todos os ingredientes, misturando bem.
- Prove e ajuste os temperos.
- Sirva em seguida ou refrigere. O molho dura até uma semana na geladeira.
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