O Brasil tem em si tantos Brasis que, às vezes, a gente mesmo acaba se sentindo estrangeiro em terra natal. E, na verdade, acho maravilhosa essa sensação de se encantar com o novo, mas que, ao mesmo tempo, de alguma forma, já faz parte da nossa cultura. Pois acabo de voltar de uma rápida viagem ao Pará com essa sensação de encantamento. Como é bom ver que o Brasil é ainda mais incrível, diverso e interessante do que a gente já sabia! Entrar na Floresta Amazônica, tomar banho no Tapajós e comer muito peixe, tucupi e jambu me mostraram uma porção de novos cheiros, sabores e saberes típicos indígenas, muito além do açaí, do guaraná e da mandioca, já tão familiares.
O melhor jeito de conhecer os sabores locais é sempre na feira. E, no Pará, o destino certo é o tradicional Ver-o-Peso, em Belém (também gostei do Mercadão 2000, em Santarém, embora tenha menos variedade). Tudo bem que o mercado é também um ponto turístico (um tanto sujo e descuidado), mas não deixa de ser autêntico e de reunir num só lugar os sabores nada óbvios do Pará. Tem camarões secos e ainda suculentos, farinhas de todos os tipos (as de Bragança, de suruí e a de tapioca em pérolas com coco são as minhas preferidas), castanha-do-pará fresquinha, recém-tirada do ouriço (tem sabor leve de coco e quase que escorre um leite dela quando você morde, bem diferente da vendida no Centro-Sul do país). Tem aquele colorido todo das ervas: coentro-do-pará, jambu, e claro, alfavaca, manjericão, vinagreira, bredo. Tem cumari e mais um bocado de pimentas. Tem a diversidade incrível de frutas amazônicas com a vantagem de poder provar várias delas na barraca da dona Carmelita, como cajá, abiu, jambo, sapoti, bacuri, pupunha, jenipapo, abricó-de-macaco. Tem a ala dos peixes e frutos do mar superfrescos e tão mais baratos que aqui em Brasília que dá vontade de encher um isopor para levar para casa. Tem ainda toda a oferta de banhos de cheiro que se possa imaginar com as ervas locais, quase todas pouco conhecidas do lado de cá do país. E, para quem estiver com fome, tem comida à vontade. Só de lembrar já fico com água na boca da tapioca de coco molhada da barraca da dona Lúcia. Uma perdição! Já o Léo foi como os locais e provou peixe frito com farinha e açaí, que lá é comido assim: uma garfada do peixe, outra de farinha e por cima o açaí puro e bem concentrado.
O Pará produz 90% de todo o açaí consumido no mundo, o que é impressionante. Mas mais surpresa ainda fiquei ao saber que o estado é líder nacional na produção de cacau. Pois é, apesar de não reconhecido, o Pará tem cacau dos bons, como o lá da Ilha do Combu. Desses, o mais famoso é o cacau feito artesanalmente pela dona Nena. Ela usa o fruto selvagem do próprio quintal, que cresce à sombra de samaúmas, castanheiras e pés de cupuaçu. Quem estiver em Belém vale a pena atravessar o rio Guamá até a ilha para conhecer um pouco do projeto. A própria dona Nena nos recebeu e contou a trajetória da família, desde a falta de apoio no início do projeto até o reconhecimento como referência em negócios sustentáveis. Eles fazem do zero — colheita, fermentação, torra — uma massa de cacau bruto, vendido em barra, que é o grande símbolo dessa história. Há alguns anos, dona Nena queria aprender a refinar o cacau que produziam para fazer bombons e vender em feiras na cidade. Para isso, chamou o chef Thiago Castanho, dos ótimos Remando do Peixe e Remanso do Bosque, para ensiná-la. Mas, surpreso com a qualidade do produto, em vez de ensiná-la o processo de refinamento, ele a fez ver que o grande trunfo estava justamente naquela barra de cacau rústica, sem processamento. E é esse cacau que vem ganhando destaque país afora, nos cardápio de restaurantes de chefs como o próprio Thiago, Alex Atala, Roberta Sudbrack. Hoje a dona Nena está aumentando a fábrica ao lado de casa e já vende também outros produtos, como chocolates em barra, nibs de cacau, geleia de cupuaçu e a típica cachaça com jambu.
Menos popular fora do Norte e originário da Amazônia, o jambu é, talvez ao lado do coentro-do-pará (ou chicória, como eles chamam), a erva mais característica da culinária paraense. Para quem não conhece, é aquela erva com uma florzinha amarela que dá um tremelique na língua. A sensação é muito diferente e o sabor das folhas lembra agrião, porém mais marcante. Não pode faltar no tacacá e fica ótimo também na moqueca de tucupi, que aprendemos lá, cozido no arroz ou só escaldado mesmo. Gosto também de fazer um molho de jambu com pimenta e azeite que fica levemente dormente e picante, bom para acompanhar peixes e frutos do mar. Aliás, descobri que o jambu de lá, aparentemente a mesma variedade que tenho plantada aqui, tem as flores e folhas maiores e o caule menos fibroso, bem mais macio depois de cozido. Minha amiga e companheira nesta viagem, Maíra, do @tampopoinspira (que, aliás, fez um post ótimo sobre a viagem, com dicas boas para quem curte gastronomia e quer comer bem em Belém), acha que essa diferença é uma questão de terreno mais úmido e sol. Na dúvida, já que voltamos meio viciadas no jambu, trouxemos sementes para plantar aqui.
Outra coisa que vale trazer na mala para ter o gosto da floresta em casa são as “especiarias” amazônicas: cumaru ou fava-tonka, puxuri, embiriba. Essas sementes nativas são tradicionalmente usadas para banhos de cheiro no Pará, mas, aos poucos, têm chegado às cozinhas. Comprei as minhas numa loja de ervas perto do Ver- o-Peso, em Belém, mesmo sem saber ainda como usar algumas que eram novidades para mim, como o puxuri e a embiriba, além da raiz de priprioca. Já o cumaru é mais conhecido, embora ainda não tão explorado. Tudo bem que não se pode sair colocando cumaru em tudo por aí porque a cumarina em excesso é tóxica. Segundo pesquisas, a dose segura seria até um quarto de semente por dia por pessoa, o que já é mais que suficiente para aproveitar essa delícia. O sabor lembra um pouco a baunilha com um quê amendoado. Para usar, basta ralar um pouco em doces, por exemplo, para substituir a baunilha. Aqui em casa, gosto muito de usar na granola, podendo substituir ou não o cardamomo, e no bolo-brownie de cacau. A Maíra usa em pedacinhos bem pequenos junto com nibs de cacau em um dos sabores dos seus deliciosos kombuchas Tampopo. Lá em Belém, o Bruno (@brayub), marido da Maíra, sentiu uns pedacinhos da semente na deliciosa moqueca de peixe ao tucucpi do Remanso do Peixe. Todas ótimas ideias para começar a desvendar esse sabor do Norte.
O meu jeito favorito de apreciar esse gostinho tão peculiar tem sido no purê de inhame com leite de coco (caseiro, por favor!). Juro, pode parecer estranho, mas, se provar, vai concordar comigo. Fica bom demais! Dá um sabor muito diferente, leve, aromático. Não sei por que resolvi colocar cumaru no purê, talvez porque o associei com a noz-moscada, pelo simples fato de serem sementes que são raladas sobre a comida. Bom, isso não importa. Só sei que deu muito certo. Suspeito que o leite de coco caseiro ajuda a entrosar os ingredientes e tornar a mistura interessante. E o gengibre e a noz-moscada quebram um pouco a doçura. A única questão aqui é mesmo encontrar o cumaru. Se viajar para a região Norte do país, não deixe de trazer. As sementes de lá são mais frescas e baratas e basta um bocadinho para durar um tempão. Em São Paulo, já comprei no Mercado de Pinheiros. Em Brasília ainda não vi, mas, de toda forma, sei que é possível comprar facilmente pela internet. Claro que, na falta, pode-se fazer o purê só com gengibre e noz-moscada. Mas não deixe de experimentar, uma vez que seja, com cumaru para sentir um pouquinho desse sabor da floresta.
- 500 g de inhame (taro)
- 1¼ xícara de leite de coco caseiro (gosto de bater já com gengibre)
- ½ semente de cumaru ralada
- 1 colher (chá) de gengibre ralado
- noz-moscada ralada
- 1 colher (chá) de sal
- Lave os inhames, corte-os ao meio e leve-os para cozinhar em uma panela grande com água e sal.
- Cozinhe os inhames em panela semiaberta até eles ficarem bem macios, por cerca de 20 minutos.
- Escorra-os, passe-os por água fria corrente e descasque-os. Basta puxar a casca que ela se solta facilmente.
- No liquidificador, junte os inhames, o leite de coco, o cumaru, o gengibre, a noz-moscada e o sal. Bata bem até ficar homogêneo. Se precisar, acrescente mais um pouco de leite de coco.
- Prove e ajuste os sabores (mais cumaru, gengibre ou sal).
- Sirva a seguir ou, se preferir, esquente antes de levar à mesa.
- Para fazer o leite de coco: no liquidificador, junte um coco fresco (da casca marrom) e cubra com água morna. Se quiser, adicione um pouco de gengibre fresco ralado. Bata bem por uns 2 a 3 minutos. Coe em um voal ou em um pano de prato. O bagaço que sobrar pode ser usado para fazer o bolo-brownie de cacau.
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