Adoro viajar — mais ainda quando fazemos expedições que envolvem longos preparativos, uma dose boa de aventura, outra de tempo de sobra para ver as árvores correndo pela janela do carro. Contratempos também; já me acostumei a eles. Ao longo do tempo, percebi que cair no mundo me exigia habilidades outras além de aprender a usar o GPS, fazer malas leves, cozinhar contra vento e rajadas de areia (e sob um céu de estrelas). Entendi que é preciso levar comigo a disposição interna de enxergar o novo aonde quer que a gente vá. Viajar é se jogar no desconhecido, mesmo quando já sabemos cada curva do caminho. Por mais roteiros, mapas e planos feitos, é impossível planejar os encontros. E no inesperado é justamente que a gente acha o encantamento: das coisas mais simples às obras mais magníficas da natureza.
Se tem um lugar, em todas as viagens, que é, assim, uma festa para os sentidos, um desprendimento do previsto que sempre me rende surpresas maravilhosas é a feira local. Digo feira mesmo, essas de rua ou de galpões de produtores, nas esquinas do centro ou nos arredores da cidade; não os mercados minuciosamente montados para turistas. Pense bem: não há situação melhor para você entender de vez o lugar e encontrar o povo, o cara local, a cara da cidade. Ali o citadino está despido de máscaras, puro, imerso no seu cotidiano, na sua cultura, com cheiros e cores e manias e palavras tão típicas quanto o que vem daquela terra. Para encontrar a alma do destino, a feira é a minha escolha — e uma escola também.
Se vou para o sertão da Bahia, o sul da Malásia ou o deserto do Atacama, não importa, dou um jeito de visitar a feirinha de produtores. E, claro, sempre, sempre, saio de lá carregada, entre sacolas de abóboras e maxixes ou acelgas coloridas, de saberes, receitas, insights e cenas que nunca vão me sair da cabeça. Algumas das mais marcantes se passaram no norte do Vietnã. Fecho os olhos agora mesmo e vejo em cores vivas maços de flores e cambuquiras de abóbora à venda numa calçada, uma banquinha com panquecas de trigo sarraceno fofas e fumegantes, cestas de palha rústicas penduradas numa bicicleta (algumas hoje aqui na cozinha de casa). Brotos de bambu ao lado de minibulbos de alho, uma senhora de capacete e azul e outra de chapéu típico vietnamita carregando sacolas verdes sobre os ombros. Cores, muitas, como se fossem combinadas num programa de edição.
Era domingo de manhã, dia de feira em Ha Giang, quando os produtores da redondeza levam seus cultivos ou criações para a cidadezinha. Antes da trilha entre arrozais e plantações de chá, lá vamos nós à feira com o nosso guia. Muitas verduras, galinhas e ovos, sementes, picles, umas bugigangas e uma dúzia de barraquinhas de comida. Bolinhos de todos os tipo envoltos em folha de bananeira, panquecas de batata-doce, frituras, noodles. Eu já tinha tomado café da manhã na casa da senhora Dong, que nos hospedava. Não seja tão ingênuo ou guloso como eu, leitor, de forrar o estômago antes de ir à feira, mas é que o desjejum asiático é o meu preferido e não deixo de comer por nada — pense em sopas de peixe e arroz, canja, noodles em caldo quentinho, huummm…
Estava eu resistindo às tentações da feira, até sentir um aroma acastanhado forte e instigante. Fui andando de barraca em barraca até ter certeza do que me chamava: num tacho de ferro sobre um fogareiro à lenha improvisado no chão, uma moça, sorrindo, virava no óleo quente bolinhos de arroz dourados à perfeição. Um a um eles vão ficando no ponto, depois de escorridos, ainda quentes que só, ganham uma camada quase imperceptível de açúcar soltinho e gergelim preto. Imóvel, observei a cena por uns minutos tentando absorver cada detalhe, textura, movimento e, claro, aquele cheiro. Quando dei por mim de novo, já segurava um bolinho envolto num papel jornal rasgado. A moça me olhava com o sorriso aberto. Eu não poderia imaginar o que vinha pela frente, mas é um dos sabores mais singelos e inesperados que já provei. Um bolinho de arroz glutinoso recheado de pasta de feijão verde com casquinha fininha, um tico só doce e ainda mais perfeita com o gergelim. Macio, crocante, quente, doce, salgado; de novo, macio e crocante. Suspirei. E foi aí que decifrei aquele sorriso da moça que os fritava. Olhei para a frente e agora ela sorria ainda mais, como se dissesse a mim: “entendeu a minha alegria, né?”. Ela sabia contemplar o bom, o belo, o simples. Às vezes acho que sonhei com tamanho primor, mas as fotos me asseguram a realidade e de tempos em tempos eu volto à cena para ter certeza de que a felicidade mora mesmo em pequeninas mordidas assim.
Faz tempo, por conta da pandemia, que não colocamos o pé na estrada para colecionar mais encontros com o inesperado como esse. A última vez foi em setembro de 2020, numa expedição pela Serra do Espinhaço. Pelo caminho, uns dias numa comunidade do Vale do Jequitinhonha para conhecer de perto o ofício das ceramistas de lá. E, claro, encaixei no roteiro uma ida à feira dos produtores no sábado cedinho. Como estávamos cozinhando no carro praticamente todas as refeições, era também preciso abastecer a geladeira.
Essa parte de Minas já é bem “baianeira”. Digo, é onde Minas encontra a Bahia e nos enche de sabores próprios da mistura tão boa. Tem fubá, quiabo, maxixe, chuchu de vento, arroz de pilão, rapadura, farinha de mandioca da fina e da grossa e também a de milho, flocada e bem torrada. Tem colorau, pimenta arretada e de cheiro, amendoim, abóbora caipira, feijão preto e de corda. E tem, meu caro, uma das “especiarias” mais incríveis do meu mundo tropical: a semente fresca de coentro. Ah, meus olhos nem acreditavam naquela cena — dezenas de minibuquês de sementes de coentro amarradinhos e vendidos como um item qualquer do sabor local. É por isso que amo andar de feira em feira colecionando “achados” para a minha coleção de memoráveis de cada viagem — menos souvernirs, mais experiências.
Ei, você que não curte coentro, antes que saia correndo daqui, acalme seu coração: as sementes verdes não têm o mesmo sabor das folhas (que tanta gente não tolera inclusive por questões genéticas) e mesmo você pode se apaixonar por elas como eu. Pois bem, pense numa explosão de frescor na boca. Algo bem refrescante, cítrico e com um aroma floral intenso: esse é o sabor da semente de coentro quando ainda verde. É único e um dos meus temperos prediletos. Uma pena que tão pouco explorado ainda por aqui.
O mais comum é a gente encontrar as sementes já secas. Se não tiver a sorte de achar as frescas na feira, pode plantar coentro, esperar dar flores e, então, as sementes. Depois de colhidas, elas se conservam ainda verdes uns dias num vaso com água ou na geladeira. Quando começarem a mudar de cor, deixe-as secarem, em um local sombreado e aí você terá uma nova especiaria (ou sementes para mais pés da erva)! Aliás, digo sementes de coentro aqui para usar o termo popular, mas, na verdade, esse é o fruto do coentro e todo o aroma e sabor estão na casca que envolve a semente.
Claro que quis saber como eles usam a semente de coentro verde lá no norte de Minas e a resposta foi unânime: socada no pilão com alho. Para tudo: refogar o feijão, a verdura, o frango da roça. Sabidos eles. Eu gosto muito de usá-las com peixes e frutos do mar, em moquecas (na moquequinha de siri é um sucesso), em curries e até no ceviche, que fica bem refrescante. São ótimas também em molhos (experimente no pesto), marinadas, vinagretes e conservas. A gremolata (aquele tempero italiano com salsinha, alho e sal) com sementes de coentro frescas e raspas de limão fica outra coisa.
Como geralmente compro maços e maços de semente fresca de coentro quando acho na feira, não consigo dar conta de tudo de uma vez só. Uma parte uso fresca, outra deixo secar — um pouco para plantar e outro tanto para usar como especiaria, par perfeito do cominho. Mas também adoro fermentar os grãos frescos para conservá-los por mais tempo — e ganhar um novo sabor. Eles desenvolvem uma acidez mais complexa que finaliza bem qualquer prato com peixes e frutos do mar, além de arrozes, relishes e molhos. Fazer é simples e vale por uma terapia: só precisa de um pouco de tempo e sossego para debulhar as sementes. Depois disso, é pá-pum: misture a salmoura e deixe fermentar. O tempo de fermentação é variável (quanto mais calor, por exemplo, mais rápido fermenta), mas, em geral, eu deixo entre 4 e 7 dias fora da geladeira e depois refrigero e vou consumindo aos poucos, dura uma eternidade.
Fermentar, assim como viajar, é abraçar o desconhecido. A gente nunca controla o resultado completo da experiência. Mas, duas coisas são certas. Fermentadas, as sementes de coentro perdem o verde vibrante e ganham uma cor mais sólida, um verde azeitona. E, na boca, a acidez se transforma — para mim, lembra um pouco a mistura de alcaparras com limão. Espero que, assim como eu, você se apaixone pelo inesperado, pelo novo sabor do coentro e deseje completar seus pratos com mais esta camada de interessância. Para já ajudar, algumas ideias são usar as sementes fermentadas no vinagrete, sobre um aioli ou maionese, por cima de um arroz de frutos do mar, com vegetais assados, sobre tomates frescos e maduros, com tortilhas e guacamole e até no sushi. Aqui, como na estrada, o roteiro é só um caminho, o bom mesmo é surpreender dos sentidos.
Sementes verdes de coentro fermentadas
Equipment
- 1 vidro esterilizado
Ingredients
- 1 xícara de sementes verdes de coentro
- 400 ml de água filtrada (melhor se for sem cloro)
- 2 colheres (chá) de sal marinho
Instructions
- Coloque as sementes de coentro em um vidro esterilizado.
- Em outro pote, adicione o sal na água e misture até dissolver bem.
- Cubra as sementes com a salmoura, deixando livres pelo menos dois dedos da borda do vidro.
- Se puder, use uma folha de uva ou de repolho sobre a salmoura, para garantir que as sementes de coentro fiquem afundadas.
- Tampe o pote e o mantenha em um local fresco e arejado, fora da geladeira, por 4 a 7 dias para fermentar.
- Depois refrigere. Dura cerca de 6 meses.
Deixe um comentário